Proibir motos no corredor é impensável
De boas intenções, o inferno está cheio. Este ditado frequentemente me vem à mente quando legisladores de qualquer esfera – municipal, estadual ou federal – sapecam projetos de lei com a sempre nobre mas muito genérica intenção de tornar mais seguro o uso da motocicleta.
Homens eleitos legitimamente pelo povo não deveriam perder tempo e se exporem ao ridículo com propostas sem fundamento ou de difícil execução, mas não é isso o que se vê. Provas desta conduta não faltam: obrigação de estampar nos capacetes a placa da motocicleta, exigir uso do caríssimo colete inflável, proibir trânsito com passageiro na garupa e a recente limitação da velocidade de todas as motos a 110 km/h são apenas alguns exemplos de ideias que, felizmente, naufragaram diante do bom-senso.
Fácil como apertar uma embreagem é perceber que tais propostas, teoricamente em favor da segurança dos motociclistas e cidadãos brasileiros, não são elaboradas ouvindo a “voz das ruas”, os diretamente interessados e afetados, usuários de motocicletas e motoristas dos outros veículos. São esboços de leis que parecem nascer do puro achismo ou de um impulso primal tipo “ai que vontade de criar uma lei… pronto, criei! Estudos e pesquisas para embasá-los? Para quê?
Um pouco diferente das bizarras propostas mencionadas é o projeto de lei 02650/2003, que como um zumbi saiu do reino dos mortos no final de junho passado, e cuja análise pode voltar à pauta do plenário da Câmara dos Deputados a qualquer momento. Caso passe na Câmara e no Senado, e não seja vetada pela Presidência da República, motocicletas não poderão mais circular no chamado corredor.
Por qual razão este PL é diferente? Várias são as razões. Primeira delas é não haver um consenso mundial sobre ser apropriado ou não a uma motocicleta ou similar (scooter, motoneta…) trafegar no espaço entre as faixas de rolamento.
Recentemente, o G1 consultou motociclistas, motoristas e especialistas de trânsito do Brasil e exterior, assim como traçou um panorama de como é a legislação sobre isso em outros países. O resultado é bem heterogêneo, uma colcha de retalhos, resultado de diferentes culturas e realidades.
Moto é admirada em outros países
Em alguns países o tema “motos no corredor” é inexistente pois ou as cidades não padecem de dimensões gigantescas ou a frota de veículos de duas rodas não é relevante. Já em outros pontos do globo, especialmente na Europa e Sudeste Asiático, onde a intimidade com o guidão vem do berço – todos passam pela bicicleta e pelo ciclomotor antes de chegar ao carro – o conflito entre a turma das duas rodas versus os das mais rodas não se põe.
Eles veem parte da paisagem e quem opta pelo guidão não é visto como pária, mas sim admirado por optar por um transporte mais econômico e sustentável. O acesso a determinadas áreas de algumas das grandes cidades europeias é proibido aos carros e franqueado aos veículos de duas rodas, o que atrai usuários entre todas as camadas sociais.
E no Brasil, como é? Por enquanto é a guerra! Quem anda de motocicleta diariamente na maioria dos casos o faz por necessidade. Deste modo, obrigar a estes usuários abrir mão de uma de suas principais vantagens do veículo, a agilidade, seria no mínimo uma discriminação antidemocrática.
Andar no corredor entre carros no Brasil sempre foi permitido e é impensável reverter esse cenário sem resultados negativos. Todavia, há que se ver o lado de quem não anda de moto, gente que está cansada de se assustar com as buzinadas e com os borrões barulhentos saídos do nada passando a centímetros de suas orelhas.
Não existe consenso sobre o corredor
Entre nossos especialistas em trânsito há quem assegure a premente necessidade da proibição, como há quem diga que sem poder andar no corredor, aí sim motociclistas estarão correndo perigo extremo, aliás uma vertente indicada por pesquisas de maneira cada vez mais consistente. Enfim, zero consenso.
Premissa básica: não será uma lei (mais uma!) e ainda por cima de fiscalização impossível que colocará ordem no barraco. O que há de real é que no Brasil o trânsito é selvagem demais. Grande parte dos motoristas e motociclistas conduz sem o devido senso de responsabilidade.
Volante ou guidão são tidos como instrumentos de auto-afirmação e não ferramentas de controle dos veículos e “guiar bem” um carro ou uma moto é algo que a maioria absoluta interpreta como a arte de dominar o veículo, e não de levá-lo dentro de preceitos estritos de segurança e em respeito as regras de trânsito. Em suma, quem sabe empinar uma moto ou dar um cavalo de pau em um carro é “piloto”, competente, quem não sabe é “bração”, incompetente.
É aceitável que motociclistas trafeguem entre filas de carros quase parados, mas jamais em velocidade elevada. Estudos internacionais indicam que a velocidade segura para tal não pode superar 16 km/h acima da velocidade do veículo que está sendo ultrapassado. Ou seja, se o trânsito se arrasta a 20 km/h, a moto deve passar no corredor a no máximo 36 km/h. Como medir isso? Talvez o “quanto” não seja tão importante mas sim o “como”.
A parte frágil do trânsito é o pedestre. Depois dele vem ciclistas, motociclistas e assim por diante, do menor para o maior. O grande deve cuidar do pequeno, sempre, todavia o pequeno deve cuidar de si mesmo e não é isto que se vê. Já disse, em coluna publicada em maio de 2013 (Faixa para motos é apropriada, mas é preciso mudança de comportamento) que trafegar de motocicleta nos corredores entre os carros exige uma consciência da vulnerabilidade que não parece estar sendo adequadamente compreendida por boa parcela dos motociclistas brasileiros.
Na outra ponta estão nossos motoristas, que ainda não entenderam que a fragilidade alheia é um problema que os afeta mesmo se encapsulados por uma gaiola metálica forrada de almofadas de ar.
Leis não são respeitadas
Lei sobre a transparência das películas? Temos! Mas o aparelho que mede não compõe o equipamento dos policiais e, assim, deixa-se pra lá: até carros da polícia usam películas mais escuras do que o permitido, e no para-brisa! Lei sobre a emissões de poluentes na atmosfera? Temos! Mas, cadê o controle? E falar ao celular enquanto se dirige (ou pior, teclando mensagens!) pode? Claro que não, dá multa, mas isso é corriqueiro, não?
Como se vê, o percurso entre o horror e o paraíso quando o assunto é trânsito não passa por mais leis, mas sim pela educação, incutir uma nova postura diante deste e de outros velhos (e chatos) problemas decorrentes do convívio em sociedade.
É tempo de uma nova consciência coletiva e esta pode e deve ser construída com campanhas educativas. É tempo de dar aos renomados e premiados criativos da publicidade brasileira a oportunidade de mostrar o que é certo. Para isso e necessária a chancela (e a verba) do Estado para efetivamente apelar ao bom senso de toda a sociedade, que será muito mais motivada ao bom comportamento desta maneira do que se ameaçada pela punição com mais uma questionável lei.
(g1.globo)
(FOTOS: Rafael Miotto/G1)